Pesquisar neste blogue

quinta-feira, novembro 09, 2017

Festejar o S. Martinho

(Fotografia da Net)

É dia de S. Martinho, / vou à adega e provo o vinho / e tanto o posso escolher / maduro como verdinho / que o tempo vai de fartura / Há de tudo no caminho. //

Em dia de S. Martinho / Lume, castanhas e vinho/ Então farei meu magusto / por certo aqui pertinho / na Casa dos Transmontanos / Ao toque de um cavaquinho// 

E diz-se: 

Pelo S. Martinho / mata o porco e prova o vinho / come dele e bebe nele / Vai prà cama mais quentinho / E entrega a tua fortuna / a quem te pedir carinho.// 


Ficou-me esta ideia de cantar por ver e ouvir outros que o fazem quando se lhes solta a língua, mais atentos que ficam os distraídos por se sentirem provocados com anomalias do género. É o desabitual que leva ao reparo e assim usei do modo para atrair ouvintes. Se bem ouviram, os provérbios de S. Martinho andam à roda da comida e da bebida, no seguimento das colheitas e dos recheios de arca ou de despensa, que é o mesmo que dizer no seguimento dos trabalhos e canseiras. Da história fica um resumo de generosidade porque o cavaleiro romano deu metade da capa ao pobre, mas fica também um acumulado de tradições de reverência ao ciclo agrícola, ao sol e ao tempo, à mulher e ao homem. As castanhas este ano tiveram falta da chuva e o tempo deixou-as mais incertas, mas as que derem para satisfazer o convívio hão-de bastar para consagrar esta festa como partilha de memórias: hoje cada vez mais acentuadas pela diferença em relação a práticas de ser e de estar de nossos pais e avós, hoje cada vez mais acentuadas pela diferença entre a aldeia e a cidade, hoje cada vez mais integradas em movimentos de consumo e de revisitação discursiva em programas de entretenimento ou de excursionismo temporão. É assim e o S. Martinho pode muito bem tomar-se pelo cavaleiro andante que o tempo é, o cavaleiro que vai passando por gentes e lugares e intuindo abastança ou carência, nesse ritmo diferenciado que a globalização de imagens e de palavras vai ainda consagrando como variedade: há terras onde tudo se transformou e nada parece ser igual ao que foi e há terras onde parece tudo estar nos mesmos moldes de ser, não obstante as modificações de o fazer. Os soutos de castanheiros andam com a morte declarada, mas vão resistindo, as memórias de Maria castanha fazem regressar os plantios e as teimosias de muitos tolos hão-de assegurar ainda muita castanha aos vindouros. Conto a história: andava um homem de idade a plantar castanheiros quando passou outro por ele com menos anos e lhe chamou tolo por estar a plantar e já não chegar a tempo de vida para colher os frutos; o primeiro homem, o plantador, quis saber então se o seu interlocutor possuía castanhas ao que ele respondeu que sim, muitas e boas pois tinha castanheiros que lhe bastavam e todo o orgulho de os ter lhe servia agora para apoucar o trabalho do plantador idoso. Pois se as tem, foi porque outro tolo como eu as plantou para si, homem de Deus e vá-se lá por elas. O castanheiro é aquela árvore que desafia a longevidade de gentes e de lugares, quase mesmo as leis da natureza, pois agente os vê velhinhos e a dar castanhas, quase a morrer e a despontar galhos novos. E aos que se plantam e morrem o conselho dado é que se plantem outros e se espere, entretanto a ciência faz caminho por eles e tudo pode melhorar. Que assim seja, é o que afinal a lenda de S. Martinho perpetua, esta ideia de vivermos com metade deixando ao futuro a outra. 

A folha do castanheiro / tem biquinhos como a renda / quem tem amores assim / não pode ter melhor prenda // – diz outra cantiga que se contrapõe a essoutra da gabarolice parola de exibição do que não se mereceu: 

No alto daquela serra / tem meu pai um castanheiro / dá castanhas em Abril / e uvas brancas em Janeiro. // 

Que as castanhas vos sejam de fartura comedida e fique delas a saudade de novos anos. 

Sem comentários: